É consabido que o Concílio Ecumênico Vaticano II introduziu reformas na liturgia católica e também no modo de agir com as igrejas separadas. Alguns setores tradicionalistas, em que pese, digamos, o grande risco de cisma, não aceitaram as decisões conciliares e resolveram promover uma guerra contra toda e qualquer renovação na Igreja, sob o pretexto de defendê-la da “heresia modernista” e da “apostasia silenciosa”. Incorrem em diversas contradições, contudo.
É verdade que os riscos modernistas e silenciosamente apóstatas foram salientados por papas passados, e muito convenientemente. Contudo, quando grupos como a Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX) dizem defender a Igreja da própria Igreja, estão eles combatendo uma apostasia, ou criando eles mesmos uma apostasia? Estão combatendo um modernismo pernicioso, ou cultivando um tradicionalismo pernicioso?
A FSSPX e a liturgia
Em que pese a FSSPX e os tradicionalistas em geral falarem também de outros assuntos, a questão principal é sempre a liturgia. Veja-se a apresentação da “tradução informal para o português” de Acuso o Concílio, publicada pela FSSPX no Brasil:
Dom Lefebvre atraiu a atenção do mundo por sua oposição às mudanças que se faziam na Igreja em nome do Concílio Vaticano II. Textos ambíguos, aprovados pela possibilidade de uma interpretação ortodoxa, eram invocados depois para justificar uma interpretação heterodoxa. As reformas na liturgia tinham implicâncias teológicas capazes de adulterar a fé. Logo, não eram lícitas.
Ressalte-se que Constituição Sacrosanctum Concilium, sobre a reforma da liturgia, foi aprovada com 2.147 votos favoráveis e apenas 4 contrários. Ou seja, foi certamente a expressão da vontade dos pastores da Igreja Católica, não por uma estreita maioria, mas por um consenso do qual discordaram quase que apenas os que se separaram da Sé romana.
Os que seguem tal fraternidade afirmam, em primeiro lugar, que se trataria de uma fórmula com 2.000 anos de existência. É mentira. O rito aprovado por pelo papa São Pio V foi, justamente, aprovado por este papa, em conformidade com a doutrina sobre o Sacrifício [Eucarístico] da Missa, do Concílio de Trento, de 17 de setembro de 1562. A promulgação do rito data de 8 anos depois, 1570. Portanto, é um rito mais ou menos fixado há 442 anos e que não impediu a celebração de diversos outros ritos, como, por exemplo, o ucraíno e o ambrosiano. Trata-se de uma fixação do rito romano e de sua extensão por toda a parte onde não se usasse tradicionalmente um rito diferente.
Historicidade do rito romano tradicional
Qual a finalidade de se fixar uma determinada fórmula para celebração da Missa, e ainda obrigar que seja dita em latim, em vez da língua local? Simplesmente porque, no século XVI, o uso do vernáculo se misturava aos ímpetos cismáticos dos que viam, na autoridade do papa, uma espécie de ditadura romana. Isso levou a cismas, heresias e até mesmo guerras, como a guerra camponesa na Alemanha nos anos 1520 (não por acaso, logo no início da reforma luterana). A língua litúrgica e a autoridade dos príncipes se misturaram e resultaram em que, a meados daquele século, os príncipes do Sacro Império Romano-Germânico pudessem impor a profissão de fé de Augsburgo (luterana) ou a romana. Mesmo em tais condições, o Concílio de Trento estabeleceu:
Ainda que a Missa inclua muita instrução para o povo fiel, sem dúvida não pareceu conveniente aos Padres que ela seja celebrada em todas as partes em língua vulgar. Por este motivo, ordena o Santo Concílio aos Pastores e a todos que tenham cura de almas, que conservando em todas as partes o ritual antigo de cada igreja, aprovado por esta Santa Igreja romana, Mãe e Mestra de todas as igrejas, com a finalidade de que as ovelhas de Cristo não padeçam de fome, ou as crianças peçam pão e não haja quem o reparta, exponham freqüentemente por si ou por outros, algum ponto dos que se leêm na Missa, no tempo que esta se celebra entre os demais, declarem especialmente nos domingos e dias de festa, algum mistério deste santíssimo sacrifício.
Ou seja, decidiu que ela não seja “celebrada em todas as partes em língua vulgar”, mas que se exponha freqüentemente (em língua vulgar) “algum ponto dos que se lêem na Missa”. Mais adiante, no mesmo documento sobre a doutrina da Missa, condenam-se apenas os que defendem “que a Missa deve ser dita sempre em língua vulgar” (cânon IX).
Ademais, o rito sofreu alterações posteriores, incluindo a oração a São Miguel Arcanjo que, por determinação do Papa Leão XIII passou a ser rezada ao final da Missa a partir de 1886 (há 126 anos).
Missa e signos
O ritual da Missa é essencialmente a significação do sacrifício de Cristo. Ou seja, o sacrifício eucarístico, instituído diretamente por Deus, é atualizado através de sinais visíveis. Esses sinais, por sua vez, derivam diretamente das palavras proferidas por Jesus na última ceia, em que instituiu sua memória, a atualização do sacrifício, e o sacerdócio dos apóstolos. Tais palavras foram provavelmente ditas em aramaico, língua corrente na Palestina daquela época. Foram escritas no evangelho em grego. Daí, foram vertidas para o latim. Não perderam, contudo, seu significado, quer dizer, transmitem ainda hoje o sinal da morte e da ressurreição do Deus Vivo. Instituem verdadeiramente a Eucaristia, o sacrifício divino em favor dos pecadores, não pelo poder das palavras, mas pelo poder sacerdotal que Deus confere aos presbíteros e pastores da Igreja universal. Para que os sinais do verdadeiro e real sacrifício presente na missa sejam recebidos pelos fiéis, é necessário que estes compreendam o que é feito, como diz a constituição conciliar mais recente:
11. Para assegurar esta eficácia plena, é necessário, porém, que os fiéis celebrem a Liturgia com rectidão de espírito, unam a sua mente às palavras que pronunciam, cooperem com a graça de Deus, não aconteça de a receberem em vão. Por conseguinte, devem os pastores de almas vigiar por que não só se observem, na acção litúrgica, as leis que regulam a celebração válida e lícita, mas também que os fiéis participem nela consciente, activa e frutuosamente.
Portanto, para que não haja um involuntário sacrilégio, é necessário que o fiel participe do sacrifício no sentido de compreendê-lo e apreendê-lo. Para que o uso da língua vernácula, “de grande utilidade para os fiéis”, não excedesse sua função, a mesma constituição determina que o texto traduzido deva ser aprovado pelo Vaticano (n.º 36).
O Concílio Vaticano II e os ritos já estabelecidos
Ademais, o mais recente concílio não teve propósito de alterar a fé, e sim de reafirmá-la e atualizar sua expressão. No tocante aos ritos, assim prescreve:
4. O sagrado Concílio, guarda fiel da tradição, declara que a santa mãe Igreja considera iguais em direito e honra todos os ritos legitimamente reconhecidos, quer que se mantenham e sejam por todos os meios promovidos, e deseja que, onde for necessário, sejam prudente e integralmente revistos no espírito da sã tradição e lhes seja dado novo vigor, de acordo com as circunstâncias e as necessidades do nosso tempo.
Deixemos ao próprio concílio falar a respeito de seus objetivos pastorais na reforma da liturgia:
1. O sagrado Concílio propõe-se fomentar a vida cristã entre os fiéis, adaptar melhor às necessidades do nosso tempo as instituições susceptíveis de mudança, promover tudo o que pode ajudar à união de todos os crentes em Cristo, e fortalecer o que pode contribuir para chamar a todos ao seio da Igreja. Julga, por isso, dever também interessar-se de modo particular pela reforma e incremento da Liturgia.
Separar-se da fé católica dizendo defender a tradição contra o “modernismo” do Concílio Ecumênico Vaticano II é, portanto, tentar transformar a forma litúrgica (o rito) em um falso sacramento, como se tivéssemos na tradição uma forma ritual instituída diretamente por Deus, e não sinais visíveis do real sacramento eucarístico. E querer retirar dos sinais visíveis a possibilidade de ter receptores entre os fiéis leigos é querer retirar destes a possibilidade de acederem à realidade do sacrifício do Deus Vivo presente na Missa.
Querem continuar a celebrar conforme o missal antigo? Não há problema, ele continua sendo válido, pois obedece plenamente ao que é imutável. É uma das “duas formas da única lex orandi da Igreja de rito latino.” Porém, não podemos sacralizar o que está sujeito à mudança. A língua latina evoluiu. As palavras de Cristo foram vertidas para essa língua. A Missa evoluiu, mesmo no rito de S. Pio V. Os sinais continuaram lá. Agora temos uma outra forma, preferível porque atinge mais pessoas e é capaz de reunir mais fiéis em torno do sagrado sacrifício. Não há uma oposição que se possa fomentar, pois também nessa nova forma os sinais continuam. Quem quer que a Missa perca seu sabor para o povo? “O sal é uma coisa boa, mas se ele perder o seu sabor, com que o recuperará? Não servirá nem para a terra nem para adubo, mas lançar-se-á fora. O que tem ouvidos para ouvir, ouça!” (Lc 14,34-35)