A história dos dogmas

São Vicente de Lérins

De todos os temas que estudei cursando teologia, um dos que mais me atraíram foi a história dos dogmas. Os dogmas são por definição imutáveis, e seus enunciados (quando proclamados formalmente) devem ser claros e precisos para que a eternidade do conteúdo se manifeste na perenidade da fórmula. Porém, essas mesmas formulações não surgem ao acaso: são fruto de intensos debates e mesmo de combates no interior da Igreja ou contra os hereges. Por isso mesmo, a sã teologia não é aquela que se limita a repetir fórmulas sem vida, mas que traz à vida a doutrina revelada e traz vida à doutrina formulada. (A mera repetição de fórmulas e citações, que vemos demais no YouTube e em livros simplistas, é chamada pejorativamente “teologia do Denzinger” até mesmo no prefácio ao compêndio doutrinário elaborado originalmente por Denzinger.)

Pois bem, hoje a segunda leitura do Ofício das Leituras é justamente uma exortação de são Vicente de Lerins, no século V, falando dessa vida do dogma, da mutabilidade do entendimento humano da Revelação divina:

O desenvolvimento do dogma na religião cristã

(Cap. 23: PL 50,667-668)

Não haverá desenvolvimento algum da religião na Igreja de Cristo? Há certamente e enorme.

Pois que homem será tão invejoso, com tanta aversão a Deus que se esforce por impedi-lo? Todavia deverá ser um verdadeiro progresso da fé e não uma alteração. Com efeito, ao progresso pertence o crescimento de uma coisa em si mesma. À alteração, ao contrário, a mudança de uma coisa em outra.

É, portanto, necessário que, pelo passar das idades e dos séculos, cresçam e progridam tanto em cada um como em todos, no indivíduo como na Igreja inteira, a compreensão, a ciência, a sabedoria. Porém apenas no próprio gênero, a saber, no mesmo dogma o mesmo sentido e a mesma significação.

Imite a religião das almas o desenvolvimento dos corpos. No decorrer dos anos, vão se estendendo e desenvolvendo suas partes e, no entanto, permanecem o que eram. Há grande diferença entre a flor da juventude e a madureza da velhice. Mas se tornam velhos aqueles mesmos que foram adolescentes. E por mais que um homem mude de estado e de aspecto, continuará a ter a mesma natureza, a ser a mesma pessoa.

Membros pequeninos na criancinha, grandes nos jovens, são, contudo, os mesmos. Os meninos têm o mesmo número de membros que os adultos. E se no tempo de idade mais adiantada neles se manifestam outros, já aí se encontram em embrião. Desse modo, nada de novo existe nos velhos que não esteja latente nas crianças.

Por conseguinte, esta regra de desenvolvimento é legítima e correta. Segura e belíssima a lei do crescimento, se a perfeição da idade completar as partes e formas sempre maiores que a sabedoria do Criador pré-formou nos pequeninos.

Mas se um homem se mudar em outra figura, estranha a seu gênero, ou se se acrescentar ou diminuir ao número dos membros, sem dúvida alguma todo o corpo morrerá ou se tornará um monstro ou, no mínimo, se enfraquecerá. Assim também deve o dogma da religião cristã seguir estas leis de crescimento, para que os anos o consolidem, se dilate com o tempo, eleve-se com as gerações.

Nossos antepassados semearam outrora neste campo da Igreja as sementes do trigo da fé. Será sumamente injusto e inconveniente que nós, os pósteros, em vez da verdade do trigo autêntico recolhamos o erro da simulada cizânia.

Bem ao contrário, é justo e coerente que, sem discrepância entre os inícios e o término, ceifemos das desenvolvidas plantações de trigo a messe também de trigo do dogma. E se algo daquelas sementes originais se desenvolver com o andar dos tempos, seja isto agora motivo de alegria e de cultivo.